Os limites da medicina preventiva no cuidado à saúde
É preciso educar os pacientes para que não interpretem os dados gerados por dispositivos de forma errada, o que coloca em risco o cuidado e onera todo o sistema de Saúde
A medicina preventiva está mesmo em alta, seja pelo crescimento no uso de aplicativos, dispositivos vestíveis e outros gadgets que monitoram a saúde e fornecem dados importantes, seja pelo avanço tecnológico conquistado pela medicina diagnóstica e genômica, que permite identificar, cada vez mais cedo, a chance de uma doença aparecer. Em comum, essas iniciativas têm o foco no empoderamento do indivíduo para o autocuidado.
“A medicina preventiva hoje é voltada para a atenção primária de saúde, o que significa que todas as medidas tomadas são para que a doença, a condição ou o mal não ocorram”, explica Fernando Teles de Arruda, médico e coordenador do curso de medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), com passagens como gestor pelas Santas Casas de Araraquara e Ribeirão Preto.
Mas, existe também a chamada prevenção secundária, cujo foco é evitar que surjam complicações de uma doença já instalada. Seja para não deixar a doença acontecer ou para evitar que complicações se desenvolvam, a medicina preventiva tem também a vantagem de impedir o aumento de gastos com a instalação da patologia.
“A gestão da operadora e a gestão da saúde pública já sabem que é muito mais barato trabalhar a prevenção do que o tratamento e a terapêutica de reabilitação”, constata Arruda.
Só que para tudo funcionar como deve, algumas ações são necessárias. A primeira delas é o paciente estar empoderado do cuidado com a própria saúde e participar das decisões junto aos médicos. Depois, é preciso refletir mais sobre o controle desses dados de saúde que fornecem tantas informações importantes para uma assistência prévia eficaz.
“Um dos grandes problemas que temos hoje é justamente sobre como usar os dados de saúde disponíveis e estabelecer quem deve ter acesso a eles, autorizando seu uso, ou não. Esta será uma grande discussão ética que teremos nos próximos anos”, acredita Arruda, lembrando que os dados já estão em nuvem e as fontes de abastecimento são crescentes.
E com tantos dados disponíveis, outro ponto de atenção será a má interpretação dos próprios dados que o paciente acumula em uma determinada plataforma.
“Falta ao paciente o conhecimento para interpretar os dados que lê corretamente. E isso pode levá-lo a situações de risco importantes”, declara Arruda.
Se a consulta ao chamado “Dr. Google” já é problemática nesse sentido, por trazer uma enxurrada de informações descontextualizadas, ter uma plataforma de dados que centraliza todas as informações relevantes sobre a saúde de um indivíduo e alimentada por vários médicos de especialidades diferentes pode provocar até mesmo más condutas médicas pela falta de conhecimento técnico daquilo que está descrito. Outro problema com uma leitura leiga desses dados é qualitativo.
“Imagine que o médico descreve na plataforma uma infecção sexualmente transmissível, ou qualquer outra doença que tenha forte estigma na sociedade, e essa informação vaze ou seja vista por um cônjuge que não deveria ter acesso? É por isso que a proteção desses dados, além da maneira correta de usá-los, é fundamental na discussão sobre medicina preventiva. Especialmente porque a informação e o conhecimento técnico final são duas coisas distintas”, diz o especialista, deixando claro que ainda é preciso discutir o modelo ideal de acesso do paciente a todos esses dados.
Um dos caminhos mais promissores para resolver essa questão é pensar em como os médicos podem educar o paciente para evitar que os dados gerados por esses dispositivos sejam usados erradamente e onerem o sistema de saúde.
“Sempre pensamos a formação médica como assistencialista, ou seja, um profissional que atende e dá receitas. Hoje, é certo que precisamos formar médicos que dominem a assistência, mas que também tenham domínio do papel da educação e da gestão da saúde”, diz o coordenador, enfatizando que:
“Não existe prática médica sem um processo educativo associado.”
Sendo assim, o médico é um educador por 24 horas e, para isso, precisa ter uma boa comunicação, que seja clara, sem termos técnicos e contextualizada.
Portanto, como diz Fernando Arruda, a medicina preventiva também ressignifica o papel do médico a partir da lógica de que o paciente tem acesso às informações que precisam ser lapidadas no conhecimento, de forma mútua, para o paciente ser corresponsável pela saúde. Esse é, afinal, o empoderamento que tanto se fala.
“Só que hoje esse comportamento ainda é mínimo, já que o indivíduo deposita no médico toda a confiança por sua própria saúde e faz parcialmente aquilo que deveria ser a sua obrigação de cuidado”, reforça.
Como a tecnologia pode ser usada para contribuir, de fato, com um modelo de cuidado integrado onde a organização de Saúde orienta esse indivíduo na busca pela conservação da sua qualidade de vida?
Arruda responde que: “A tecnologia tem grande potencial de ser um facilitador de todo esse processo da medicina preventiva primária ou secundária, desde que consiga integrar quem cuida e quem é cuidado com informações claras, objetivas, precisas e contextualizadas.”
Esse é o grande imbróglio que vivemos hoje, pois quanto mais agentes estão integrados, maior é o acesso aos dados sigilosos e à informação.
“Eu ainda não vi modelos completos e seguros nesse sentido, há apenas versões fragmentadas para nichos específicos que ainda não integram o todo. Talvez uma possibilidade seja a customização da ferramenta para cada paciente e suas necessidades”, sugere. Assim, a medicina preventiva será também individualizada.