Como o overdiagnóstico corrói os resultados da Saúde

Líder do movimento Choosing Wisely Brasil comenta que uso consciente de recursos racionaliza custos e reduz eventos adversos, ampliando a segurança do paciente e a sustentabilidade do setor

Como o overdiagnóstico corrói os resultados da Saúde

Reduzir o desperdício é pauta de dez entre dez líderes brasileiros de Saúde. Diante da alta do custo assistencial e da pressão exercida sobre os serviços por conta do envelhecimento populacional e da mudança do perfil epidemiológico, torna-se imperativo à gestão em Saúde traçar estratégias para o uso consciente de recursos, com vistas à sustentabilidade do ecossistema.

A tarefa, porém, não é simples, especialmente na Saúde Suplementar. Embora o número de beneficiários de planos médicos tenha diminuído no Brasil, o de exames, por exemplo, só cresce. Entre 2014 e 2017, a queda de beneficiários foi de 6,6%. Em compensação, o aumento no número de exames foi de 15% (dados da ANS). As solicitações de exames complexos, inclusive, são maiores do que em alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos.

Foi por lá que surgiu, em 2012, o movimento Choosing Wisely (Escolha Consciente, em tradução livre), iniciativa da American Board of Internal Medicine (ABIM) para reforçar o paradigma de que, em muitos momentos, há procedimentos que não precisam ser feitos e podem levar a situações ‘over’ na gestão de Saúde — os chamados ‘overtratamento’, ‘overdiagnóstico’ e ‘overuso’.

Nesta entrevista exclusiva, o cardiologista Luis Correia, professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina e coordenador do movimento no Brasil, fala sobre o tema. Leia na íntegra:

 

Blog da MV: Embora o número de beneficiários da Saúde Suplementar tenha diminuído no Brasil, o de exames só cresce. As solicitações de exames complexos, inclusive, são maiores do que em alguns países desenvolvidos. Por que esse cenário ocorre?

Luis Correia: O padrão de uso excessivo de recursos médicos na Saúde Suplementar brasileira é aparentemente maior do que no sistema de saúde americano, que é quase que integralmente privado. Por isso mesmo, por lá a noção de auto sustentabilidade é mais prevalente. O sistema brasileiro é um misto de sistema público, que atende 70% a 80% da população, e suplementar, responsável por, em média, 20% a 30% dos brasileiros. Teoricamente o sistema suplementar oferece mais recursos ao usuário que o sistema público, que tem mais carência de recursos. Esse contraste faz com que o sistema de saúde suplementar tenha a obrigação de prover tudo, porque se tenho direito ao público, mas decido pagar, eu quero algo a mais. E os gestores têm por cultura entregar esse algo a mais que o paciente demanda.

Blog da MV: Então o “overdiagnóstico” é um problema cultural...

Luis Correia: Sim, essa cultura no Brasil de que se paga por algo a mais, algo que não precisaria pagar porque há um sistema público e universal, incentiva o uso excessivo. Ainda na comparação com os Estados Unidos, lá a população só conta com a Saúde Suplementar, que é paga, então existe um maior custo consciência — tanto dos médicos quanto da população. No Brasil a cultura é "se eu comprei o serviço, quero que ele me dê tudo do bom e do melhor".

 

Blog da MV: Por que você acredita que essa consciência não chegou aos médicos?

Luis Correia: Porque a classe médica é remunerada por serviço e, portanto, também tem a postura de gerar mais para melhorar a sua remuneração. Nós não evoluímos ainda para uma remuneração baseada em qualidade. Volto a citar o exemplo norte-americano. Por lá a remuneração está muito mais ligada à competência, e não à quantidade de procedimentos. Dessa forma, a Saúde Suplementar se torna um mau exemplo para o sistema público, pois se subentende que ele não tem direito de racionalizar, porque é interpretado como um sistema que não estaria provendo o que a população precisa. Então, nem mesmo a racionalidade do sistema público está presente no Brasil, já que o SUS fica sujeito à judicialização e a pagar tudo a todos justamente por causa dessa cultura de que preciso receber o máximo independentemente do valor daquela conduta médica.

 

Blog da MV: Quais são os impactos do "overdiagnóstico"  para a gestão em Saúde e para o paciente?

Luis Correia: Eles vão muito além do evidente desperdício na saúde. O "overdiagnóstico” é um diagnóstico fútil e, portanto,  vai gerar uma conduta médica que não trará benefício à saúde, além de impactar diretamente na segurança do paciente. Um certo percentual de pessoas fatalmente experimenta essas consequências indesejadas. O "overtratamento"  pode levar a uma ocorrência mais séria. Dou como exemplo o "overdiagnóstico" de câncer, proveniente do rastreamento, em especial com os meses coloridos, Outubro Rosa e Novembro Azul sendo os mais conhecidos. Esse rastreamento ocasiona, muitas vezes, um "overdiagnóstico" de tumores que não se transformariam em cânceres e levam a tratamentos que implicam em cirurgias mutiladoras no caso das mulheres, que levam à impotência ou incontinência urinária no caso dos homens, sem falar nos efeitos da quimioterapia e radioterapia.

 

Blog da MV: Como deve ser realizada a conscientização de médicos e pacientes de forma a reduzir o chamado "overdiagnóstico" na Saúde?

Luis Correia:  A conscientização começa principalmente com a comunidade médica. É preciso trazer o paradigma científico para o raciocínio clínico, o que chamamos de medicina baseada em evidências. Mas só conscientização não basta, não é suficiente para mudar comportamentos. Temos que discutir como mudar as condutas médicas, o que não cabe só ao médico. Ele está inserido dentro de um contexto cultural que predispõe ao "overdiagnóstico" e ao "overtratamento" . Claro que esse médico tem grande papel de modificar o contexto, mas a discussão precisa incluir o diálogo entre a sociedade como um todo, incluindo pacientes, profissionais e a gestão de Saúde. A próxima revolução científica depende da revolução do pensamento, o que significa que precisamos parar de pensar de forma fantasiosa e assumir o pensamento probabilístico, entendendo que certas atitudes têm probabilidade maior de causar efeitos adversos que benefícios.

 

Blog da MV: Qual papel os modelos de atenção primária em saúde têm na prevenção do "overdiagnóstico"?

Luis Correia: Os modelos de atenção primária são importantes na prevenção do "overdiagnóstico" e "overtratamento"  porque neles o médico generalista, ou médico de família, representa uma barreira. Esse profissional tem uma visão do todo e não sofre daquele entusiasmo, ou mesmo conflito de interesses, que muitas vezes o especialista tem. Chamo isso de viés de habilidade, ou seja, eu tenho habilidade de fazer um exame, de diagnosticar e tratar essa doença. Então, o modelo de atenção primária cria uma barreira, representada pelo generalista, que pensa no paciente e no sistema de Saúde como um todo. Na própria saúde privada norte-americana o modelo é valorizado como uma saída para a redução do "overdiagnóstico". E eu não estou dizendo que especialidade é ruim, porque eu sou especialista também. Mas é preciso uma conscientização ainda maior desses profissionais para não se tornarem reféns do viés de habilidade.

 

Blog da MV: Que tecnologias você considera úteis para prevenção do "overdiagnóstico" na Saúde?

Luis Correia: A questão do "overdiagnóstico" não é resolvida unicamente com tecnologia. Mas ferramentas como prontuário eletrônico, inteligência artificial, entre outras, são, sim, úteis do ponto de vista de construção de estratégias que incentivem a racionalização de recursos na Saúde. Mas é preciso, ainda, uma mudança de paradigma verdadeira, que depende do estímulo ao pensamento racional, o principal fator incentivador de condutas mais conscientes na Saúde.

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Blog da MV: Como você avalia o momento do movimento Choosing Wisely no Brasil?

Luis Correia: Estamos vivendo um momento muito bom, com diversas sociedades e hospitais aderindo ao processo. Há em torno de 20 sociedades médicas envolvidas, espalhando a nossa mensagem. E a sociedade como um todo gosta e cobra reflexões que proponham mais saúde e qualidade de vida aos cidadãos.

 

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